Crítica ao livro Não Conto, de Sérgio Almeida — coletânea provocadora que flerta com o absurdo e desmantela a ideia de normalidade na ficção.

Review crítico do livro Não Conto, de Sérgio Almeida 5/5 (1)

Uma coletânea de quase-contos que desmantela a lógica do cotidiano e expõe a fragilidade da normalidade

Na literatura contemporânea, poucas obras conseguem ser tão desconcertantes quanto provocativas. Não Conto, de Sérgio Almeida, entra nesse seleto grupo com uma ousadia formal e temática que desafia as expectativas do leitor logo nas primeiras páginas. Trata-se de um livro que se recusa a se encaixar confortavelmente nas gavetas convencionais da narrativa curta, embora flerte com o formato do conto em quase todas as suas composições. O título já antecipa essa recusa: ao declarar “Não Conto”, o autor sinaliza que ali não há promessas de começo, meio e fim nos moldes tradicionais, mas sim fragmentos, lampejos de existência e absurdos cuidadosamente elaborados.

Publicado pela editora Thesaurus em sua 1ª edição, lançada em 1º de janeiro de 2013, Não Conto está disponível em português e possui 272 páginas em edição de capa comum. Embora pouco convencional em sua proposta, o livro vem conquistando leitores atentos à experimentação estética e à crítica social velada em narrativas breves, mas poderosas.

As histórias que compõem Não Conto orbitam um eixo comum: a subversão do que é tido como real ou normal. Sérgio Almeida leva o leitor para territórios de estranhamento, onde os personagens — por vezes caricatos, por vezes humanos demais — veem ruir as estruturas que sustentam sua percepção de mundo. Com uma linguagem enxuta, por vezes afiada como lâmina, o autor cria um mosaico de situações insólitas que funcionam como espelhos distorcidos da sociedade contemporânea.

COMPRE ESSE LIVRO NO AMAZON


Narrativas que exploram o absurdo como verdade estética

Um dos aspectos mais fascinantes da obra está na maneira como Sérgio Almeida utiliza o absurdo como catalisador narrativo. As situações descritas em Não Conto não são apenas bizarras — elas são perturbadoramente plausíveis dentro da lógica distorcida que o autor constrói. Esse estratagema literário remete ao teatro do absurdo de Ionesco ou à ironia kafkiana, mas com um toque lusófono muito próprio, onde a linguagem se presta tanto à comicidade quanto ao desalento existencial.

Em “Viver para matá-la”, por exemplo, a transformação de uma dona de casa ao começar a questionar o sentido da própria vida resulta em uma reação em cadeia que desmonta seu mundo com uma precisão quase cruel. Aqui, o ato de pensar torna-se um ato revolucionário — e devastador. A mesma abordagem ocorre em “Naufragar é preciso”, onde o protagonista se agarra a uma dignidade imaginária nos instantes finais de sua vida à deriva. O riso e o pesar se entrelaçam, criando uma ambiguidade emocional que ecoa muito além do texto.


Personagens construídos com ironia e desencanto

O conjunto de personagens presentes no livro é, por si só, um espetáculo à parte. Esvaziados de qualquer aura heroica, eles transitam entre o grotesco e o patético com naturalidade. Não são apenas caricaturas do humano; são representações amplificadas dos nossos delírios, medos, obsessões e pequenas tragédias diárias.

Do drama de um revisor de comboios que, à força de observar milhares de passageiros diários, se esquece dos contornos do próprio rosto, às memórias do célebre ditador A. H., narradas pelo seu bigode de estimação, Não Conto é uma jornada sem retorno assegurado pelos meandros imprevisíveis mas sempre fascinantes da psique humana.

Essa passagem revela com precisão o estilo literário de Almeida: uma mistura de surrealismo e crítica psicanalítica, filtrada por um senso de humor ácido. O escritor capta a essência da alienação moderna e a transforma em arte literária. Suas personagens são ociosas, instáveis, megalômanas — e nelas não falta nenhum dos pecados capitais, com exceção do maior de todos: a normalidade.

Ao transformar esse traço em ausência — a ausência da normalidade — o autor parece lançar uma provocação direta ao leitor: em um mundo repleto de disfunções, não seria o comportamento dito “normal” uma ilusão desesperadamente mantida?


Estilo narrativo fragmentado e propositalmente inconclusivo

Outro mérito do livro reside em sua construção formal. Ao adotar uma estética fragmentada, Sérgio Almeida rompe deliberadamente com a linearidade tradicional dos contos. Cada texto é como uma pequena cápsula de caos — encapsulado, mas não resolvido. O leitor é convidado a entrar no vórtice, mas raramente recebe uma âncora para sair dele.

Essa abordagem pode ser desafiadora, especialmente para quem espera arcos dramáticos bem definidos. No entanto, para o leitor disposto a se deixar levar pela prosa quase ensaística de Almeida, a experiência é recompensadora. A linguagem, mesmo quando econômica, é rica em subtexto, jogos de palavras e alusões culturais. Há algo de filosófico na escrita do autor, mesmo quando esta se mascara de paródia ou non-sense.


Crítica social embutida no surreal

Apesar da atmosfera por vezes onírica ou alucinada, Não Conto não está dissociado da realidade. Muito pelo contrário: é na crítica social que o livro encontra uma de suas camadas mais afiadas. Em um mundo saturado de regras, rótulos e rotinas, as pequenas implosões que ocorrem nas narrativas funcionam como resistência simbólica.

Ao desestabilizar os alicerces do cotidiano, Almeida revela o quanto esses alicerces são artificiais. Ele questiona, por meio do exagero, a obsessão por coerência, sucesso, identidade fixa. Seus personagens não são apenas figuras ficcionais — são metáforas ambulantes da crise contemporânea de sentido. No fundo, o livro propõe uma pergunta simples, mas perturbadora: o que resta quando tudo aquilo que julgávamos certo deixa de fazer sentido?


Conclusão

Não Conto, de Sérgio Almeida, é uma obra que incomoda — e esse talvez seja seu maior trunfo. Longe de oferecer conforto ou respostas fáceis, o livro propõe um mergulho no desconforto da existência moderna, escancarando as falhas, as contradições e o absurdo que permeiam nosso dia a dia. Com uma prosa afiada e uma imaginação sem amarras, o autor constrói um universo onde tudo pode acontecer — inclusive nada.

É literatura para quem gosta de ser desafiado, para quem enxerga valor no estranho, no inacabado, no incoerente. Não é um livro para todos, mas é certamente um livro que marca. Ao fim da leitura, resta a sensação de ter atravessado um território instável, onde as certezas se dissolvem e o riso se mistura à melancolia. E talvez seja exatamente essa a função da boa literatura: provocar, desconcertar, deixar cicatrizes.

Se você gostou dessa publicação sobre o livro “Não Conto” de Sérgio Almeida, compartilhe com seus amigos. Ficou com alguma dúvida? Envie-nos uma mensagem.

Por favor, avalie isto